Sunday, June 06, 2004

Brigada dos Desenhistas

Brigada dos Desenhistas
Carlos Ferreira

Eles chegam com uma cara de que aprontaram alguma coisa e ficam me esperando abrir a porta. Pra variar o bar tá cheio e não tem mesa vazia, mas não sei por quê, acabo abrindo exceção para esses vagabundos e, conhecendo como eu os conheço, eu sei que aprontaram. Bom, não são meus clientes há muito tempo, eu nem precisaria abrir, porém vou precisar de um favor deles. Eu os chamo de a Brigada dos Desenhistas. Falo do Walter Hadi, Rodrigo Rodrigues, Mat Matrix, Gramp e Cao Guimarães. Às vezes são acompanhados por outros como o Phil, Jack e Belotti. Sentam-se à mesa de sempre e conversam sobre o passado, festas , quadrinhos, queimação de filmes e o mal. Sempre carregam um peso na língua quando falam no mal. E eu só fico no bico por que me dão aquela olhadinha. Apesar da canalhice, eu sei que são do bem, mas um dia eles passarão da linha e eu terei tudo armado. Meu nome é Charlene, sou a dona do Mercatto que é um antiquário durante o dia e um bar à noite.
Eu faço contrabando de arte. Com a guerra no Iraque a moda agora é os artefatos iraquianos que são vendidos no mercado negro a preço de banana para serem revendidos como diamantes. A minha inclusão no contrabando é só uma fachada por que sou uma espiã do governo francês. O que acabo de ler é um trecho de um conto, de uma narração da personagem que o Cao diz ter se inspirado em mim. Parece que ele pensa em fazer uma história sobre uma espiã chamada Charlene. O que é isso? É uma cantada? Eu pergunto o que eles vão beber, uma Polar é a resposta. A mesa de sempre ainda não está liberada, mas não estão preocupados.
- Eu tive uma nova teoria sobre o que é a Matrix.
- Cara, a trilogia já acabou! Já sabemos tudo. E tu ainda tá nisso?
Essa é a razão do Mat ter o apelido de Matrix. Ele vive na Matrix. A coisa com o Walter é o trago e os cigarros. Gramp é o mais light e fashion deles. Rodrigo está sempre calmo e perdido, sempre olhando pra mim. Cao é cada vez mais careca e gordo, quando não está escrevendo no jornal ou fotografando, está produzindo os seus quadrinhos. Dizem que é uma autobiografia mentirosa que envolve discos voadores e demônios. Eu só sei que eles vêm no meu bar e bebem, bebem muito.
Agora a mesa preferida está vazia. Tentam sentar todos na mesma cadeira, um ponto estratégico para ver as meninas entrando no bar. Então eu levo a cerveja.
- Um brinde a elas!
- Serão vários brindes a elas.
- Bom, devia ser o primeiro brinde a Charlene!
- Cara, essa mulher tá demais hoje.
- Nem brinca! Essa mulher tá demais todos os dias!
- Acho que ela tá solteira, tá mais sorridente.
- Mais iluminada.
- Então, vamos brindar a Charlene! Um brinde a Charlene!
- Que presença!
- Acabou a cerveja. Charlene!
E a Brigada me chama. Pego mais duas garrafas e vou até a mesa. Sirvo cada copo deixando a espuma chegar na beirada sem derramar.
- Então, rapazes? Quando vão parar de olhar?
Volto a atender os outros clientes e eles ficam bebendo em silêncio.
- Cara, essa mulher tá provocando.
- Não. Ela tá tentando por limites.
- É melhor parar a babação.
- E falarmos da Espada Selvagem de Conan?
- Eu prefiro seguir na minha bem quietinho.
- Molenga!
- Nego bobo!
- É a mente contra o corpo! Matrix era sobre isso!
- Quem é que vai pedir a próxima?
Mais duas garrafas deixam os meninos mais calmos.
- O que tu tem feito, Cao?
- Eu não tenho feito muita coisa, só salvado o universo, coisa e tal.
- Que papo mais de marvete. Quem tu pensa que é? O Vigia?
- Bah! O Vigia era legal! Cadê o Vigia?
- Arranjou emprego como vigilante de rua e saiu do universo marvel.
- Cara, vocês não crescem! Ainda continuam lendo gibis de super-heróis?
- O que tu quer, Rodrigues? Quer que eu fale daquele dia lá no teu estúdio que tu quis me mostrar aquele álbum escroto com machões peludos e gays fortões?
- Que papo é esse?
- Já que tu começou, termina.
- Um dia o Rodrigo começou a falar de um desenhista italiano, Nazário, lembram? O molenga aí disse que tinha um álbum tri-bom, super bem desenhado, mas rolava um sexo com tipos fortes comendo o cu um do outro. O Rodrigo descreveu as cenas com detalhes dizendo o número exato de quadrinhos na página e quando olhei não tinha nada disso no álbum. Era a pura imaginação do viadinho!
- Cara, eu me enganei. Tava numa outra revista.
- Sabemos.
- Por que tu tem um quadrinho assim, Rodrigo?
- Acabou a cerveja.
- Chama mais!
Rodrigo tinha uma expressão de melancolia no olhar e acompanhava tudo o que eu fazia. Resolvi sorrir para ele e isso o deixou tímido. Será que ele é gay?
- Sabia que o Rodrigues tem uma coleção de revistas pornográficas para gays, Charlene?
- Não, por quê? Ele te emprestou?
- É melhor tu ficar quietinho depois dessa, Ed Motta.
- Bom, tenho que reconhecer quando eu perco uma batalha. Essa mulher tá na tua Rodrigo!
Definitivamente o Rodrigo não é gay e eu devo seguir os procedimentos e regras dos negócios noturnos. Não vou me envolver com um cliente, principalmente com um cliente casado. Detalhe: são todos casados naquela mesa.
- O que vamos beber agora?
- Eu tô pensando numa tequila.
- Pra mim, vai ser uma vodka.
- Eu vou de gim.
- Eu sigo na cerveja.
- Eu também, mas um whisky vai ser uma maravilha!
Cada um foi servido como queria. Lá do fundo do bar eu ouvia as risadas e o papo. Eram velhos amigos com aventuras e turnês pelo show de horrores da boemia. Atravessaram duas décadas de amizades o Rodrigo e o Cao. Walter começou a andar com eles no início da década de noventa. Depois apareceu o Mat e o Gramp que eram os mais jovens da Brigada. Tinham também as participações especiais que eu não sabia muito bem de que épocas se conheciam. O Phil eu sei que era dos anos oitenta por que Cao sempre falava que o detetive roubou uma garota dele quando eram adolescentes.
- E a Fran, Cao? Tu já comeu?
- Quer levar um soco nos bagos, Hadi?
- Quem é a Fran?
- Um caso mal resolvido do Cao.
- Uma colega de trabalho que morre de amor por mim.
- Bom, eu não chamaria aquilo de amor.
- É melhor ter aquilo do que não ter nada.
- Diz isso pra tua patroa.
- Separou de novo, Hadi?
- Eu não quero falar de mim. Vamos beber. Cadê aquela coisinha da Charlene. É de uma mulher assim que eu preciso, rapazes.
- Quem te escuta falar até acha que tu gosta de mulher.
- A tua não reclamou.
- É brincadeira esse humor de desenhista. Já notaram a competição que fica rolando entre a gente? Quem comeu mais mulher que o outro? Quem desenha melhor?
- Quem ganha mais grana?
- Quem é o mais famoso?
- Eu comi mais mulher!
- Eu ganhei mais grana!
- Eu sou o mais famoso!
- Eu sou o melhor desenhista!
- Um brinde aos fodões da cocada!
- Mais trago, Charlene!
- E o Jack não disse que viria?
- O Jack só promete e nunca vem.
- Tão entrando!
- O quê?
- Umas coisinhas lindinhas no bar. Olha aquela de blusinha amarela.
- Que peitinhos!
- Meus Deus! Insulta o meu pau!
- Puta merda! Da onde tu tirou isso, escroto!
- Tá com medo?
- Olha a amiguinha dela!
- É uma delícia.
- Estou com vontade de ir pro maaaallll!
- Vamos pro maaaallll?
- Pro maaaallll!
- Quem sabe pedimos as últimas e seguimos viagem.
- Alguém trouxe o Santana?
- Eu sempre venho com o Santana.
- A noite não vai prestar!
- Tia Carmem?
- Não. Lá é muito caro!
- É. Eu não tenho grana!
- Só tenho dinheiro pra pagar uma ceva.
- E quer ir pras putas.
- Eu também tô sem grana.
- Bom, daqui eu vou para casa. Sou pai de família.
- E a conta?
Já me devem muito dinheiro. Uma bolada grande. Eu poderia dar a volta ao mundo com toda essa grana, mas aqui estou secando a mesa preferida e anotando a conta. O favor que eu ia pedir aos sujeitos não vai ficar para próxima.
- Eu quero conhecer o tal Mal. O que houve? O gato comeu a língua de vocês, desenhistas?
- Bom, como eu disse sou pai de família.
- Minha grana já acabou.
- A minha também.
- Vão arredar, maricas? A Charlene faz parte da equipe.
- Ela gosta de mulheres?
- Não. Gosto de mistério, Rodrigo.
- Não fala assim.
- Já ouviram falar de um tal Ave Porco?
- É melhor todos se manterem longe dali.
- Por que?
- O lugar é assombrado.
- Tu já vai começar, Cao?
- Depois não diga que eu não avisei.
- Tu realmente vai para casa?
- Já tô indo. Um abraço para todos. Cuida bem do Rodrigo, Charlene.
Quando Cao sai da mesa eu tiro o avental e peço para a Marta limpar tudo e cuidar do bar. O caminho que eu sigo não vai ter volta, mas só tenho trabalhado e preciso descobrir o que esses guris tanto aprontam. Estão encabulados e quietos. Quem quebra o gelo é o Walter.
- Bom, eu não vou. Vou pegar um táxi.
- Eu vou junto. Tchau.
- Esperem por mim.
Só sobrou o Rodrigo.
- Vai embora também?
- Quer mesmo conhecer o mal?
- Se tu manter as mãos no lugar certo, eu vou contigo.
- Para o Ave Porco?
- Para a minha casa?
- Tu mora no Ave Porco?
- Não. Mas um café eu tenho em casa.
- Que tal se eu te beijar?
- Na minha casa, na minha cama.
- Eu não sei onde deixei o meu carro.

Eu nunca me envolvi com clientes e homens casados. Como já comentei, é a lei dos negócios, mas não é a lei da natureza. O que vai acontecer à partir disso eu não quero saber. Eu me conheço. Preciso de calor e depois do meu frio. Espero que Rodrigo saiba que ele é perfeito por ser casado. Não é uma relação o que quero. Desejo esquecer um ex-marido e um bar que chupa. O que quero, é sentir o quê aqueles olhos tanto me investigam.
Mas Rodrigo pára o carro no meio do caminho.
- Olha, acho que eu não posso. Isso acabaria com o meu casamento e eu estou muito bêbado.
- Ave Porco, então?
- Azar!

Ontem não veio nenhum deles no bar, tampouco anteontem e sei que não vão aparecer durante algumas semanas. Na minha vida é sempre assim: quando eu apronto, os homens ficam com medo. Fogem correndo se escondendo debaixo das saias das mães ou, com medo do tigre que vêem em mim.

Porto Alegre, 14 de outubro de 2003.