Wednesday, July 07, 2004

Conto dois

Arquitetos das Sombras
Carlos Ferreira

Há muito o que contar sobre as camadas subterrâneas da alma humana. Meu nome é Cao Guimarães. Eu sou um repórter investigador. Escrevo matérias onde apresento o mundo em que vivemos como um jogo de espelhos. Tenho uma certa fama de esquisito. Mas essas esquisitices é o que anda dando grana para esse jornaleco.
O Impresso me contratou há quatro anos. Antes, me dedicava as minhas histórias em quadrinhos e a minha tentativa de fazer filmes. Precisei botar um pouco de dinheiro no bolso, e aqui estou tentando sobreviver. Só que, a vida não é tão simples.
Arquitetos das Sombras é uma revista do jornal. Sai todos os sábados como encarte de vinte páginas. Uma antiga idéia que coloco hoje em prática. Tenho escrito sobre coisas que são tão absurdas que a minha popularidade de mentiroso e exagerado tem crescido. Sem falar dos problemas na minha vida amorosa.
Os fãs das conspirações e os tipos com as mentes mais abertas, lotam a minha caixa de e-mail com sugestões de pautas e advertências que a minha vida corre riscos inimagináveis. Tudo por que me deparei com o sobrenatural em alguns momentos da minha profissão.
O que chamo de sobrenatural são: eventos que ainda não consegui uma explicação racional. Acredito que tais eventos trazem uma outra lógica. Porto Alegre é uma cidade que eu considero um vórtice desses problemas surreais.
Tenho a certeza que o Rio Grande do Sul, Uruguai e Argentina estão entrelaçados como um ninho, abrigando um universo que ainda não conhecemos, mas, às vezes, arranhamos as paredes e furamos a membrana que nos separa dessas probabilidades. Escrevo sendo observado por um olhar obscuro, nas sombras, no canto da sala.
Por favor, não me considerem místico. Prefiro ainda ser classificado como louco. Admito que tenho um pouco da loucura dentro de mim. Ver o que eu já vi, passar por coisas que eu já passei e ainda estar aqui com um meio sorriso na cara, flertando uma cervejinha gelada; é algo para poucos. Apesar das surras que já levei, ainda estou de pé esperando o topo.
Tenho sorte de ter um editor que é gente boa e me deixa atualmente trabalhar longe dos afetados da redação. Num porão silencioso, com baratas e com um pôster da seleção de setenta.
O problema é que, Fagundes não confia o suficiente em mim. Sempre diz para eu viajar o menos possível . Por isso, botou a mala da Fran para trabalhar comigo. Até que, quando ela vem com aquela blusinha azul ou aquele terninho tipo Scully, não é um problema. Ao contrário, é a diversão da minha vida.
Entra ano, sai ano e essa mulher ainda continua a me perturbar. Basta eu lembrar das nossas discussões, dos tapas que já recebi dela e principalmente quanto tempo eu já a conheço; que eu fico quietinho. Bom, quase quietinho. Não sou santo e gosto de provocar a menina. E quando isso acontece, ela faz questão de lembrar que sou casado e que tenho um filho.
Os Guimarães são canalhas por hereditariedade, Cao? Eu conheço os meus limites, demônia. Nada impede um amorzinho platônico e uns beijinhos embalado com trago. Mas tenho que estar muito bêbado para isso, e olha que já fazem anos que eu não fico muito bêbado. A última vez foi na festa de funeral do João Paulo da agência Titã. Mas o que importa a minha vida privada? Estou aqui para escrever sobre o mundo além da realidade.
Que tal, falar da beldade que foi atacada por abelhas e maribondos e, depois, transformada num casulo?
Bom, a história começa assim...


Porto Alegre, 04 de novembro de 2003.

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